Reflexões sobre a Maçonaria contemporânea e alguns dos seus desafios: mulher, o uso das redes sociais, laicidade e Landmarks – Parte I
Introdução
A sociedade contemporânea vem passando, desde a segunda metade do Século XX, por profundas e exponenciais transformações que têm provocado mudanças significativas nas relações sociais e culturas nas mais diversas partes do planeta. Estas transformações (fundamentadas no desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação; da Logística Global e das forças político-econômicas provenientes das Empresas Corporativas) têm gerado aculturações, hibridismos culturais e multiculturalismos proporcionados pelo uso dos sistemas de comunicação e forças mediáticas que aproximam e / ou afastam povos e induzem comportamentos.
A estes fatos, soma-se a convergência das tecnologias digitais, biológicas e físicas que sinalizam fortemente a possibilidade, já quase real, da ocorrência de singularidades que marcarão a profunda conexão simbiótica entre homens e máquinas de várias formas e meios, selando o início definitivo de um novo ciclo de desenvolvimento humano, onde também a inteligência artificial confrontará em muito a inteligência humana no seu uso em diversas atividades da vida.
Frente a uma contemporaneidade que se apresenta como palco onde pessoas e instituições são profunda e constantemente confrontadas com desafios concretos nas suas relações, a Maçonaria também se posta neste cenário como mais um agente que enfrenta desafios que possuem as suas origens em gerações passadas, concomitantemente com desafios característicos desde século XXI que, direta ou indiretamente, influenciam significativamente as dinâmicas das relações sociais.
Dentro deste contexto algumas questões vinculadas com a Maçonaria na contemporaneidade emergem como norteadoras de estudos e reflexões sobre esta temática. Dentre elas, pode-se destacar: Como se configuram os desafios em relação ao papel da mulher na Maçonaria contemporânea? De que maneira a laicidade está relacionada com a atuação maçónica? De que forma os Landmarks se apresentam como um ponto de pauta no contexto maçónico da contemporaneidade? Como as redes sociais podem ser usadas de forma construtiva no ambiente maçónico?
Vale destacar que a realização de estudos que se debruçam sobre estas questões se ancoram na percepção da sociedade como campo de interações e transformações. A sociedade transforma-se de tempos em tempos através de processos contínuos e abruptos de mudanças culturais e tecnológicas, gerando tensões entre gerações de pessoas e instituições. Estas tensões provocam ajustes na forma com que os indivíduos e as instituições lidam com determinados valores de tal monta que práticas consideradas inadmissíveis em determinada época podem ser consideradas normais noutra e vice e versa.
A Maçonaria, fundamentada em Landmarks, Estatutos, Constituições, bem como usos e costumes específicos da Ordem, está também sujeita ao mesmo fenómeno temporal e tem apresentado traços evidentes de plasticidade em alguns casos e rigidez em outros, no que diz respeito às características da sua manifestação como um fenómeno social.
Neste sentido, dilemas como Landmarks e contemporaneidade, a participação da mulher, o uso de Redes Sociais, bem como da laicidade vêm persistindo no tempo como tópicos presentes em alguns círculos de discussão e geradores de impasses nas relações entre pessoas e instituições.
Vale destacar também que, a partir da segunda metade do século XX, houve significativas mudanças nas relações entre empresas, instituições, grupos sociais e pessoas, na medida em que estes sujeitos começaram, através da internet e das novas tecnologias, aceder, processar e divulgar rapidamente um volume maior de informações.
A Maçonaria também não ficou à parte destas transformações, na medida em que várias instituições maçónicas vêm de forma crescente incorporando mudanças no modo de operar as suas informações através da criação de sites, blogs, e-mails corporativos, sistemas de informações gerenciais customizados, redes sociais, dentre outros.
Estudos que se esforçam em resgatar estas temáticas são considerados relevantes na busca de melhor entender como estes fenómenos se apresentam em uma Ordem místico- filosófica que historicamente tem sido denominada de secreta por uns e de discreta por outros.
Este trabalho busca entender, num olhar exploratório, como estão configurados os dilemas da mulher, das redes sociais, da laicidade e dos Landmarks na Maçonaria com a intenção de contribuir para estudos e práticas futuras voltadas para compreensão das transformações características da contemporaneidade. Desta forma, o objetivo geral deste trabalho reside em tecer considerações sobre os desafios da Maçonaria atual, direcionando os esforços mais especificamente em
O presente estudo caracteriza-se como sendo de cunho exploratório, com procedimentos que incorporam técnicas de pesquisa bibliográfica numa abordagem de coleta e análise de dados predominantemente qualitativa. A predominância qualitativa do presente estudo não descarta a manipulação e avaliação de informações quantificáveis envolvendo a aplicação de um conjunto de práticas interpretativas.
A trajetória estabelecida para o resgate dos desafios elencados neste artigo foi delineada com o propósito de estabelecer foco na intencionalidade de provocar reflexões daqueles que se propõem a navegar entre as dinâmicas do fenómeno maçónico no contexto da atualidade. O caminho percorrido no atual trabalho não perpassa pelo aprofundamento das questões de definição e origem da Ordem, bem como, nas questões de funcionamento, estrutura e ritualística, pois a exploração destes temas excederia significativamente os limites desta peça e do escopo proposto. Sobre a perspectiva destas questões, os trabalhos de Zeldis (1995), Pinto (1999), Castellani (2005), Costa (1994) e Charlier (1995) apresentam-se como fontes iniciais para um mergulho exploratório.
Além desta parte introdutória, o presente trabalho está estruturado em seis sessões. A primeira referente a um breve resgate teórico relacionado com a Maçonaria vista como fenómeno social e objeto de estudo académico. As três subsequentes sessões apresentam reflexões sobre os desafios da mulher, das redes sociais, da laicidade e dos Landmarks frente a uma Maçonaria contemporânea. Por fim, nas últimas sessões, são apresentadas considerações finais e as fontes utilizadas no apoio das reflexões apresentadas neste ensaio exploratório.
A Maçonaria como objeto de estudo
Desde a sua existência, a Maçonaria tem sido tópico de estudo e produção de trabalhos por vários escritores pelos mais diversos motivos e propósitos. Neste sentido, vale destacar, algumas temáticas desenvolvidas nos trabalhos em Maçonaria como a divulgação de regulamentações das suas atividades operativas; a descrição dos processos de participação dos seus membros em eventos históricos; a apresentação de vínculos entre os seus preceitos morais com processos de formação místico-filosófica do homem; a descrição de práticas ritualísticas maçónicas; a descrição do seu desenvolvimento histórico como Ordem Iniciática; dentre outros.
É de se esperar que nem todos os trabalhos produzidos sobre Maçonaria utilizem métodos rigorosos de pesquisa. Um número bem significativo de estudos que são divulgados pelos mais variados meios fundamenta-se predominantemente no uso de compilações baseadas em impressões e opiniões pessoais, e quando muito, por processos de transcrição de informações primárias obtidas através das mais inúmeras fontes sem muito cuidado no que se refere à implementação, com mais rigor, de técnicas apuradas de obtenção e análise de dados.
Desta forma, muita coisa escrita em Maçonaria traduz opiniões pessoais que beiram a hipóteses não testadas tidas como verdades comprovadas, sendo apresentadas na prática como fenómenos genéricos (quando são na realidade singulares), ou como fenómenos reais (quando na realidade se caracterizam como mitos / lendas ou costumes inovadores). Esta situação tem gerado críticas entre escritores de Maçonaria, principalmente por aqueles que têm aplicado métodos sistemáticos de estudo da realidade e assumido posturas éticas nos trabalhos produzidos, na busca de separar fatos, de mitos / lendas e de opiniões / suposições pessoais a exemplo de Ismail (2012. p. 7-10).
Em um esforço de destacar as diversas abordagens de produção de conhecimento em Maçonaria, Leadbeater (1978, p. 13-28) separa as linhas de pensamento maçónico em quatro vertentes, chamadas de Escolas de Pensamento Autêntica; Antropológica; Mística e Oculta. No que diz respeito a Escola Autêntica,
[...] surgiu na segunda metade do século dezenove, em resposta ao desenvolvimento do conhecimento crítico em outros campos. As antigas tradições da Ordem foram minuciosamente examinadas à luz de registros autênticos ao alcance do historiador. Empreendeu-se enorme soma de pesquisas em atas de Lojas, documentos de todas as espécies versando sobre o passado e presente da Maçonaria, arquivos de municipalidades e vilarejos, sentenças legais e judiciais; enfim, foram consultados e classificados todos os registros acessíveis. [...] Devido aos trabalhos dos eruditos da Escola Autêntica, aos estudantes de nossa Ordem se tornou acessível uma vasta soma de material que lhes será de permanente utilidade. (LEADBEATER, 1978, p. 14-15). |
Por mais que os trabalhos dos eruditos desta corrente de pensamento tenham tornado acessível uma importante e vasta soma de informações fidedignas, vale destacar a existência de limitações decorrentes do facto de existir muita coisa na Maçonaria que nunca foi escrita, e sim transmitida apenas oralmente, tornando relativo valor dos documentos e arquivos que são incorporados à cultura maçónica. Segundo o autor, a Escola Antropológica está vinculada aos estudos e descobertas na área da cultura humana, associando os costumes religiosos e iniciáticos de sociedades do passado e do presente, de vários países e continentes, com os rituais e simbologia maçónica. Dentro desta perspectiva, os argumentos apontam para o facto de que os sinais e rituais utilizados na Maçonaria são também encontrados em vários locais como Egipto, México, China, Índia e em diversos Templos e Catedrais da Europa Medieval.
A terceira corrente de pensamento, denominada de Escola Mística, vê predominantemente os mistérios da Ordem como um plano para o despertar espiritual e o desenvolvimento interior do homem. A espiritualização torna-se a via individual interna, na qual a Maçonaria oferece um roteiro que orienta a marcha mística consciente da união do buscador com o Divino. Sob esta perspectiva, o interesse está mais centrado na interpretação do que na pesquisa histórica. Desta forma, esta escola de pensamento tende a associar o parentesco da Maçonaria com os antigos Mistérios que buscam proporcionar ao homem uma Senda na qual possa se desenvolver espiritualmente. Os pensadores desta corrente tendem a declarar que os graus maçónicos representam simbolicamente os estados de consciência a serem despertados individualmente no iniciado.
Já a quarta e última corrente de pensamento maçónico, apresentada por Leadbeater, denominada de Escola Oculta ou Sacramental, postula sobre a eficácia do poder sacramental do cerimonial maçónico, quando realizado de forma devida e executado regularmente. Esta abordagem fundamenta-se na noção da existência de um lado subtil oculto da natureza, que pode ser mobilizado pelos poderes existentes em todos os homens, mas adormecido na maioria da humanidade. Por mais que o objetivo do ocultista, como o do místico, seja a união consciente com o Divino, o autor alerta que os seus métodos são diferentes. Enquanto o ocultista trilha nos seus trabalhos um caminho no qual é de grande importância a exata observância da forma com o auxílio de invocações, o místico trilha um caminho através da oração, da prece e da ação consequente, não cuidando estritamente de formas, embora, pela sua união com elas, trilhe também caminhos na busca da harmonização divina.
Frente aos limites da Escola Autêntica (que não se resumem apenas na impossibilidade dos seus métodos captarem outros dados relevantes que não são possíveis de serem obtidos através de documentos escritos), abre-se um extenso horizonte de possibilidades de estudos sérios com o uso de técnicas de pesquisa qualitativa e quantitativa.
Atualmente, o pensamento científico tem avançado significativamente no que se refere à adopção e integração de métodos e desenhos de pesquisa que viabilizam leituras mais apuradas da realidade nos mais diversos campos do saber. Na medida em que a Maçonaria se torna objeto de estudo académico, ela incorpora a qualidade de ser passível do crivo nas mais diversas áreas do conhecimento, a exemplo das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Exatas, da Saúde,
Figura 1: Maçonaria como Objeto de Estudo. Fonte: Próprio Autor |
Neste sentido, cada área com as suas abordagens metodológicas específicas, é passível de proporcionar respostas consistentes para diversas questões de pesquisa relacionadas com a Maçonaria vista como um fenómeno observável e capaz de ser delimitado, observado e analisado à luz da ciência.
Para além de uma postura que rechace qualquer autor de literatura maçónica, podemos assumir que, ao falar de pesquisa científica em Maçonaria, estamos falando de adopção de método sistemático para produção de conhecimento científico. Neste sentido, existem ainda nítidos desafios e oportunidades para pesquisadores que se interessam em mergulhar nesta trilha de desenvolvimento do saber.
Na medida em que o estabelecimento de agendas de pesquisa maçónica faz-se necessário para o enriquecimento da produção literária nacional, o entendimento de que os pesquisadores podem assumir alguns paradigmas diferenciados para estudar o mesmo fenómeno torna-se imprescindível para a boa produção, o bom diálogo e a redução das improdutivas "intolerâncias académicas" entre autores de paradigmas diferentes, provocadas muitas das vezes por falta de uma compreensão mais apurada das possíveis rotas epistemológicas de estudo que um mesmo objeto comporta.
Para se perceber o quanto é amplo este espectro de possibilidades de pesquisa maçónica, pode-se apontar algumas alternativas baseadas no pressuposto de que "Ao compreendermos a Maçonaria como um fenómeno social somos capazes de analisá-la sob a esfera dos estudos organizacionais". Sobre este prisma, a título de exemplo, além da possibilidade de pesquisas científicas em Maçonaria fundamentadas no conceito de metáforas, similares àquelas sugeridas por Morgan (1996) [1], elas podem também assumir abordagens diferenciadas conforme os paradigmas sociológicos propostos por Burrell (1999) em função da natureza dos instrumentos / técnicas de coleta e análise dos dados (subjetivos / objetivos) e da natureza do processo sociológico estudado (regulação / mudança), conforme ilustrado na Figura 2:
Figura 2: Paradigmas, metáforas e as escolas de análise organizacional relacionadas. Fonte: Morgan (2005)
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Levando em consideração as possibilidades de pesquisa em Maçonaria que se abrem ao considerá-la um fenómeno social capaz de ser abordado pelo método científico, pode-se estabelecer pautas de pesquisa maçónica as quais os pesquisadores nacionais contemporâneos possam compor uma frente de produção de conhecimentos capazes de elucidar vários pontos obscurecidos e de subsidiar o fortalecimento das Ordens maçónicas. Estas pautas podem ser estruturadas em três vertentes de estudos caracterizados por pesquisas direcionadas às 1) "Questões de Origem", 2) "Questões de Evolução" e 3) "Questões de Natureza, Finalidade e Sentido", conforme apresentado na Tabela 1.
Os estudos relacionados às "Questões de Origem da Maçonaria" estariam concentrados nos esforços de identificação de demarcações temporais que apresentam características que apontam a criação de tradições, instituições, costumes e grupos sociais relacionados à Maçonaria. Neste sentido, as pesquisas histórico-arqueológicas focadas no continente Latino-Americano e no Brasil estariam entre as opções mais amigáveis aos pesquisadores nacionais.
Já os estudos relacionados com as "Questões de Evolução da Maçonaria" estariam concentrados em identificar e descrever processos de mudanças e permanências entre as mais variadas características dos fenómenos maçónicos. Neste sentido, o estabelecimento de faixas temporais para análise das transformações ocorridas nas diversas variáveis vinculadas com o fenómeno da Maçonaria no Brasil e nos continentes, torna-se um traço marcante nos desenhos metodológicos das pesquisas nesta área. As quatro faixas temporais que se apresentam como prováveis marcadores de horizontes podem ser definidas como aquelas
Por fim, os estudos relacionados às "Questões de Natureza, Finalidade e Sentido da Maçonaria" estariam concentrados em temáticas vinculadas com
Neste contexto, vale destacar que à adopção da rotina de estudo sistemático também por todos os membros das Ordens, desde o estágio inicial de Aprendiz, torna-se uma prática necessária de tal forma que possa ser percebida como traço marcante da cultura de formação do obreiro e gerador de uma produção constante de conhecimento maçónico consistente e de qualidade.
Na próxima edição de Egrégora, dar-se-á continuidade ao tema com a abordagem A MAÇONARIA CONTEMPORÂNEA E ALGUNS DE SEUS DESAFIOS: LAICIDADE E MAÇONARIA e o final do estudo de Alexandre Gomes Galindo
Informações do autor
https://www.escavador.com/sobre/715048/alexandre-gomes-galindo
Fonte: Revista Tempo Amazónico