Do Estatuto dos Refugiados à Operação Acolhida (1951 - 2021). 70 Anos De História

O Brasil e a Operação Acolhida

Por MIGUEL DALADIER BARROS em 13/06/2023 às 14:10:09

ACNUR


DO ESTATUTO DOS REFUGIADOS À OPERAÇÃO ACOLHIDA (1951 – 2021). 70 ANOS DE HISTÓRIA

MIGUEL DALADIER BARROS

HISTÓRICO DO REFÚGIO

A questão dos refugiados, tanto no cenĂĄrio internacional quanto no âmbito interno dos paĂ­ses, tem sido tema de grande relevância nos Ășltimos anos em razão da expressiva dimensão de seus fluxos na atualidade, ocasionando graves problemas sociais nos destinos de refĂșgio, tendo como resultando imediato o desrespeito à dignidade humana em face da crescente violĂȘncia decorrente da modalidade de polĂ­ticas de contenção em diversos paĂ­ses, sem que seja observada a condição peculiar de extrema vulnerabilidade desses atores no atual cenĂĄrio internacional.

Vivemos numa época em que milhares de pessoas perambulam pelo mundo em busca de um meio de vida melhor e de esperança. A BĂ­blia reconhece essa realidade. Ela traz histórias de guerra e triunfo, deslocamento e dor, frustração e esperança. Por toda a BĂ­blia, podemos ver que Deus se importa com os migrantes. Na BĂ­blia, também, encontramos a preocupação de Deus pelo bem-estar dos migrantes. HĂĄ passagens ainda sobre o estrangeiro, como "não afligirĂĄs o forasteiro nem o oprimirĂĄs, pois forasteiro foste na terra do Egito" (Êxodo, 22:20), e ainda, "se o estrangeiro peregrinar na vossa terra não o oprimireis" (LevĂ­tico, 19:33) (BARROS, 2011)[1].

Com muita frequĂȘncia, a BĂ­blia se refere aos termos migrante e estrangeiro, porém, existem trĂȘs registros especĂ­ficos sobre os refugiados. O primeiro deles (Macabeus, 10:15): "Da mesma forma os indumeus, que ocupavam fortalezas bem sitiadas, viviam provocando sempre os judeus, e atiçavam o clima de guerra, acolhendo refugiados de Jerusalém". Noutro registro (IsaĂ­as, 16:3): "ReĂșne um conselho e toma uma decisão: estende a tua sombra como noite em pleno meio-dia, para esconder os refugiados, para manter em segredo os fugitivos". Finalmente, ainda em IsaĂ­as, 6:4, talvez a passagem mais clara na BĂ­blia sobre os refugiados: "Recebe no teu paĂ­s os refugiados moabitas, sĂȘ para eles um abrigo contra aqueles que os perseguem. Quando terminar a opressão, quando a destruição tiver chegado ao fim e desaparecer do paĂ­s o opressor" (BARROS, 2011)[2].

Ao longo da História da Humanidade, fatos como conflitos e perseguições provocaram migrações forçadas, mas na contemporaneidade a multiplicidade de fatores envolvidos na formação dos deslocamentos forçados torna cada vez mais complexa a realidade dos refugiados. Na Antiguidade, um exemplo dessas migrações forçadas ocorreu durante os Ășltimos anos das Guerras PĂșnicas (264 a. C – 146 a. C) entre Roma e Cartago, resultando na fuga dos cartagineses para outras regiões da África do Norte (WARMINGTON, 2010)[3].

Entretanto, as migrações entre regiões podem ser verificadas jĂĄ no inĂ­cio do desenvolvimento humano, e desde o perĂ­odo PaleolĂ­tico [1] o gĂȘnero homo jĂĄ é marcado fortemente pelos deslocamentos. Mesmo após o desenvolvimento da agricultura, que permitiu o sedentarismo no perĂ­odo NeolĂ­tico [2], os grupos populacionais continuaram em movimento migratório, a exemplo da dinâmica das migrações indo-europeias [3].

Na antiguidade clĂĄssica, a busca por refĂșgio tornou-se tema polĂ­tico pela primeira vez. É da Grécia antiga a origem da palavra "asilo", que surge da junção da partĂ­cula "a", que para os gregos denotava negação, com a palavra asylao, cujo sentido seria o mesmo de retirar ou extrair, assim a palavra grega asylon significava a proteção às pessoas que procuravam abrigo em outras cidades por quaisquer motivos, dentre eles a perseguição (ANDRADE, 2001 apud PEREIRA, 2009)[4].

Ainda no contexto da Grécia Antiga, a noção de asilo, citada anteriormente, jĂĄ era utilizada como um direito concedido pelos governos das cidades-estados as pessoas sob perseguição. Havia locais designados para o abrigo e proteção destas pessoas, sendo principalmente templos religiosos, ambientes sagrados ou moradias de governantes. A hospitalidade era um valor importante para a cultura helĂȘnica. No PerĂ­odo Imperial romano foi desenvolvida a estrutura bĂĄsica do seu Direito, este por sua vez constituiu o primeiro sistema jurĂ­dico escrito, formal e sistematizado. O direito de asilo possuĂ­a um instituto jurĂ­dico próprio e tinha por objetivo a proteção das pessoas que sofriam perseguições injustas (PEREIRA, 2009)[5]. Assim, pessoas que buscassem asilo que não fosse com o objetivo de proteção diante das perseguições injustas em seus paĂ­ses de origem, não eram acobertadas por este instituto jurĂ­dico.

Na Idade Média (476 – 1453), com a decadĂȘncia do Império Romano, o Direito Romano também sofreu declĂ­nio. A legislação na Idade Média passou a ser intrinsecamente ligada à religião católica apostólica romana que sofria forte internacionalização, desta forma o direito de asilo, isto é, a busca por proteção por perseguições, passou a ser vinculado às construções religiosas, como mosteiros, conventos e igrejas (ARAÚJO; ALMEIDA, 2001)[6]. O domĂ­nio da igreja católica neste perĂ­odo permitia que ela detivesse um poder determinante sobre os indivĂ­duos sob perseguição, pois eram os representantes religiosos quem definiam a quem conceder o asilo.

O drama dos refugiados (migrantes ou estrangeiros, como descrito na BĂ­blia Sagrada), se confunde com a História da Humanidade. Alguns apontam a existĂȘncia de refugiados na Antiguidade, mais especificamente no Egito. Mas, foi a partir do século XV que os refugiados começaram a aparecer de forma mais sistemĂĄtica, razão pela qual aponta-se essa data como sendo relacionada ao aparecimento dos refugiados (BARROS, 2011 apud JUBILUT, 2007)[7].

A história sinaliza ainda quatro exemplos bem nĂ­tidos de refugiados a partir do século XV: os muçulmanos expulsos da penĂ­nsula Ibérica durante o século XVI, por motivo de terem origem no Império Otomano, potĂȘncia emergente e rival dos Estados ibéricos; os protestantes dos paĂ­ses baixos (1577 – 1630), num total de 14% da população da região, visto que havia uma religião oficial do Estado, com um ideal de homogeneidade, à qual os protestantes não aderiram; os huguenotes que fugiram da França em 1661, numa clara violação ao Édito de Nantes, que pôs fim à guerra civil ao conceder liberdade religiosa aos protestantes, o rei Luis XIV impôs a conversão religiosa da população ao catolicismo, proibindo a saĂ­da daqueles do território francĂȘs; por fim, os puritanos, quakers e os católicos irlandeses expulsos da Inglaterra, no século XVIII, alguns para os Estados Unidos e outros como escravos para o Caribe, em nome da unidade religiosa da Grã-Bretanha (BARROS, 2011 apud JUBILUT, 2007)[8].

Por conseguinte, a Idade Moderna (1453 – 1789) contou com inĂșmeras reestruturações e rompeu com o modelo de polĂ­tica atrelada à religião da Idade Média. A laicização do Estado permitiu que o domĂ­nio sobre o tema das pessoas em deslocamento forçado retornasse para as mãos do Estado (SOUSA, 2019)[9].



Os refĂșgios da história

Retirada de um grupo de refugiados e de soldados italianos depois do avanço austrĂ­aco em Caporetto, em 1917 MONDADORI PORTFOLIO VIA GETTY IMAGES

https://www.publico.pt/2018/08/05/mundo/ensaio/os-refugios-da-historia-1839954#&gid=1&pid=1




REFUGIADOS NO PÓS-PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914 – 1939)

Foi no inĂ­cio do século XX, especificamente no contexto nos pós-Primeira Guerra Mundial, que o tema do refĂșgio se tornou uma preocupação da comunidade internacional que exigia uma definição da condição jurĂ­dica dos refugiados, além da organização do assentamento ou repatriação, previsão de atividades de socorro e proteção desses novos atores no cenĂĄrio internacional.

Ainda dentro do contexto do término da Primeira Guerra Mundial (1914 –1918) as bases territoriais da Europa foram bastante alteradas o que teve como resultado imediato a migração de grandes contingentes humanos, estimado em trĂȘs milhões de pessoas deslocadas, muitas delas não foram naturalizadas pelos seus novos paĂ­ses, tornando-se apĂĄtridas [5].

Sobre o drama dos apĂĄtridas, Hannah Arendt, filósofa e cientista polĂ­tica, assim escreveu em sua obra "Origens do Totalitarismo": "Uma vez fora do paĂ­s de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apĂĄtridas; quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos: eram o refugo da terra"[10].

O instituto do refĂșgio, como instituto jurĂ­dico internacional global, surgiu e evoluiu no século XX, a partir de 1920, a luz da Liga das Nações [4] objetivando oferecer proteção às pessoas vĂ­timas de guerras. É por meio dela que a comunidade internacional iniciou o enfrentamento do problema mundial pelos refugiados. Em 1938 foi criado por esse órgão, o Alto Comissariado da Liga das Nações para Refugiados, inaugurando assim uma nova fase do Direito Internacional dos Refugiados, passando a qualificação, até então, de uma pessoa como refugiada, antes feito apenas por critérios coletivos (etnia, nacionalidade, origem), doravante, a ser por critérios individuais (BARROS, 2011 apud JUBILUT, 2007)[11].

Por sua vez, no sentido jurĂ­dico do termo, ou seja, como instituto jurĂ­dico de Direito Internacional, o refĂșgio surgiu no seio da Liga das Nações (LdN), em 1921, como um problema genuĂ­no, quando os exércitos inimigos avançavam, no contexto da Primeira Guerra Mundial, enviando uma grande quantidade de pessoas para além de suas fronteiras nacionais, notadamente europeias[12].

Na sequĂȘncia da Primeira Guerra Mundial, o presidente norte-americano Woodrow Wilson propôs a criação de um mecanismo internacional capaz de assegurar a paz, pela interposição de organismos de negociação e arbitragem entre as potĂȘncias e assim evitar a repetição do conflito. Em janeiro de 1919, as potĂȘncias vencedoras do conflito reuniram-se em Versalhes, Paris, para negociar um acordo de paz. Um dos pontos do amplo tratado referiu-se à criação de um "grĂȘmio internacional", cujo papel seria o de assegurar a paz.

No âmbito da comunidade internacional os interesses nacionais e o multilateralismo não são necessariamente antagônicos. Podem até mesmo ser complementares. Foi a partir dessa ideia que a Liga das Nações nasceu. Longe de serem sonhadores idealistas, seus fundadores estavam convencidos de que o "espĂ­rito de internacionalidade" e o realismo estatal estavam inextricavelmente ligados.

Portanto, foi com o objetivo de impedir as guerras, assegurar a paz, dialogar em vez de atirar, negociar em vez de matar que a Liga das Nações se reuniu pela primeira vez no dia 15 de novembro de 1920. Pouco antes, havia terminado a Primeira Guerra Mundial, que trouxera fome, sofrimento e destruição.

Durante seis anos, o governo da Alemanha lutou pela filiação à Liga das Nações. Não tanto para defender a paz e a compreensão dos povos, mas sim para atingir uma revisão do Tratado de Versalhes, nos quais estava fixado, entre outras coisas, quantos milhões de marcos a Alemanha teria de pagar às potĂȘncias vencedoras como reparação de guerra, além do que o paĂ­s não poderia mais produzir ou adquirir material bélico. Só em 1926, a Alemanha ingressaria na Liga das Nações.

A Liga das Nações obteve ĂȘxito especialmente no setor social. Ela se engajou de maneira efetiva pela melhoria das condições de trabalho, deu apoio aos paĂ­ses economicamente mais fracos, criou em Haia a Corte Internacional de Justiça e cuidou do problema dos refugiados. Mas a Liga das Nações fracassou inteiramente no tocante à garantia da paz mundial. Em 1932, deveria ser realizada uma grande conferĂȘncia de desarmamento, com a participação dos EUA e da União Soviética.

Mas o sonho não se realizou. Quando a conferĂȘncia finalmente aconteceu, em 2 de fevereiro de 1933, Adolf Hitler jĂĄ estava no poder na Alemanha hĂĄ trĂȘs dias. Ele queria a guerra e buscou um pretexto para fazer com que a conferĂȘncia fracassasse: "Se o mundo decidir que determinadas armas terão de ser inteiramente destruĂ­das, nós estaremos dispostos a abrir mão delas. Mas, se o mundo aceitar estas determinadas armas em alguns paĂ­ses, não estaremos dispostos a deixar-nos excluir, como um povo com emancipação limitada"[13].

Em outubro de 1933, a Alemanha retirou-se da Liga das Nações e deu andamento à sua polĂ­tica armamentista, sem qualquer controle estrangeiro – tomando rumo direto à catĂĄstrofe da Segunda Guerra Mundial. Ainda no mesmo ano, o Japão seguiu o exemplo da Alemanha. A ItĂĄlia retirou-se da organização em 1937. A Liga das Nações perdeu o sentido e se dissolveu após a fundação da ONU – Organização das Nações Unidas, em 1945.

O fracasso do Tratado de Versalhes e o confuso objetivo da Liga das Nações, aliado em grande parte ao ineficaz "Pacto de Briand-Kellogg", com entrada em vigor em 24 de julho de 1929 que pretendia estabelecer "a renĂșncia à guerra como instrumento de polĂ­tica nacional", não foram capazes de evitar, anos mais tarde, o maior e o mais devastador conflito da história[14].


REFUGIADOS NO PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1945 – 1951)

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), a Liga das Nações foi condenada ao descrédito por haver falhado em sua missão mais importante: manter a paz. Após ser desativada em abril de 1946, seus arquivos, instalações e acervos foram transferidos para a entidade que a substituiu, a Organização das Nações Unidas (ONU).

A Segunda Guerra Mundial, como sabemos, levou à morte cerca de 70 milhões de pessoas. Entretanto, a morte e a destruição de cidades inteiras não foram os Ășnicos efeitos devastadores da guerra. A fuga de grandes contingentes de pessoas também se enquadrou nos cenĂĄrios dramĂĄticos da Segunda Guerra Mundial. O nĂșmero de refugiados desse perĂ­odo, assim como o nĂșmero de mortos, também é contado em dezenas de milhões.

O tema refugiados ganhou destaque no contexto internacional sobretudo após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), quando mais de 40 milhões de pessoas se deslocaram no interior da Europa por ocasião da guerra. No mesmo momento, a questão dos direitos humanos passou a ser debatida pela comunidade internacional diante das atrocidades cometidas por regimes totalitĂĄrios. Isso levou à constituição do regime internacional de direitos humanos no âmbito da ONU, com a Declaração Universal de 1948, que previa o direito de procurar e gozar asilo a toda pessoa vĂ­tima de perseguição. Poucos anos depois, se fez acompanhar pelo regime internacional para refugiados. (MOREIRA, 2009 apud ACNUR, 2000)[15].

Após a Segunda Guerra Mundial, sob a coordenação da Organização Internacional de Refugiados (OIR), houve o retorno da grande maioria destas populações para sua regiões de origem e outros buscaram refĂșgio em diversos paĂ­ses fora da Europa. A retomada do processo imigratório no pós-Guerra, entre 1947 e 1951, esteve relacionada com questões mais amplas, ligadas a conflitos e processos de exclusão e intolerância entre as nações beligerantes produzidos durante o conflito mundial na Europa, que resultou na necessidade de resolver as tensões residuais de origem social naquele continente[16].

Na esfera institucional, em 1951, criou-se uma agĂȘncia especializada para proteger os refugiados e encontrar soluções para eles: o ACNUR. Ainda foi celebrada a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, que definiu como refugiado aquele: "que, em consequĂȘncia dos acontecimentos ocorridos antes de 1Âș de janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões polĂ­ticas, se encontre fora do paĂ­s de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele paĂ­s; ou que se não tiver nacionalidade e estiver fora do paĂ­s no qual tinha a sua residĂȘncia habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar". (MOREIRA, 2009 apud ACNUR, 1996, 61)[17].

Caberia ao Estado-parte estipular o entendimento adotado sobre a expressão "acontecimentos ocorridos antes de 1Âș de janeiro de 1951" (chamada de "reserva temporal"), que poderia ser interpretada como os que tiveram lugar apenas na Europa (conhecida como "reserva geogrĂĄfica") ou em qualquer lugar do mundo. O Estado que tivesse adotado a primeira fórmula (mais restritiva) poderia, a qualquer momento, mediante comunicação ao SecretĂĄrio-Geral da ONU, adotar a segunda, que contemplava um grupo maior de pessoas na definição de refugiado (MOREIRA, 2009 apud ACNUR, 1996)[18].

Assentada em duas limitações, o que evidenciava o tratamento da questão dos refugiados como algo restrito ao continente europeu e gerada pela guerra, a definição "clĂĄssica" nascia fadada à inaplicabilidade. Com o inĂ­cio da Guerra Fria, o termo refugiado praticamente se limitava aos europeus de leste que fugiam dos paĂ­ses socialistas, atendendo aos interesses polĂ­tico-ideológicos e geo-estratégicos paĂ­ses ocidentais, que buscavam desacreditar o bloco soviético. Também havia interesses econômicos, jĂĄ que a Europa estava em fase de reconstrução e se fazia necessĂĄrio mão de obra barata e abundante. Além disso, não havia diferença culturais, jĂĄ que se tratava de europeus sendo acolhidos em outros paĂ­ses do continente ou em ex-colônias (MOREIRA, 2009 apud Conly, 1993; Matas, 1993)[19].

O regime internacional para refugiados se estruturou a partir do princĂ­pio da não-devolução, previsto no artigo 33 da Convenção de 1951, que proibia os Estados signatĂĄrios de expulsar o refugiado para "as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões polĂ­ticas" (ACNUR: 1996,74). Portanto estabelece-se o dever dos paĂ­ses apenas de não devolver, deixando-se de lado a obrigação de receber refugiados, reforçando se a lógica da soberania estatal[20].


REFUGIADOS NO PÓS-CONVENÇÃO DE 1951 (1951 – 1967)

Criado em 1951, através da Resolução nÂș 48 da Assembleia das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1950, em substituição à OIR, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (com sigla em portuguĂȘs ACNUR e UNHCR em inglĂȘs) possui um mandato para proteger os refugiados e tem como principal missão buscar soluções duradouras para os seus problemas, dentre elas, a repatriação involuntĂĄria, integração local reassentamento em um terceiro paĂ­s[21].

A Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados foi formalmente adotada em 28 de julho de 1951 para resolver a situação dos refugiados na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Esse tratado global define quem vem a ser um refugiado e esclarece os direitos e deveres entre os refugiados e os paĂ­ses que os acolhem.

O fundamento legal que estĂĄ nos pilares do trabalho do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) permitiu que a agĂȘncia ajudasse milhões de pessoas deslocadas a recomeçar suas vidas. Atualmente, a Convenção continua sendo a pedra angular da proteção a refugiados.

A Convenção consolida prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados e fornece a mais compreensiva codificação dos direitos dos refugiados a nĂ­vel internacional. Ela estabelece padrões bĂĄsicos para o tratamento de refugiados sem, no entanto, impor limites para que os Estados possam desenvolver esse tratamento.

Ao passo que antigos instrumentos legais internacionais somente eram aplicados a certos grupos, a definição do termo "refugiado" no Artigo 1Âș foi elaborada de forma a abranger um grande nĂșmero de pessoas. No entanto, a Convenção só abrange eventos ocorridos antes de 1Âș de janeiro de 1951.

Entretanto, a Convenção de 1951 continha dois aspectos que, à época, limitavam o direito dos refugiados - o aspecto geogrĂĄfico e o aspecto temporal. Sob o aspecto geogrĂĄfico, a Convenção de 1951 reconhecia somente os refugiados e deslocados das regiões de conflito em solo europeu, e sob o aspecto temporal, só contemplava aquelas pessoas que se tornaram refugiados em resultado de acontecimentos ocorridos antes de 1Âș de janeiro de 1951. No entanto, os anos que se seguiram a 1951 revelaram que os movimentos de refugiados não eram uma mera consequĂȘncia geogrĂĄfica ou temporĂĄria da Segunda Guerra Mundial e do seu rescaldo pós-Guerra, e, sim, um problema de amplitude mundial que reclamava o engajamento dos Estados membros da ONU[22].

No final dos anos 1950 e durante a década de 1960, surgiram novos grupos de refugiados, especialmente na África. Estes refugiados careciam de uma proteção legal que não lhes podia ser concedida em razão dos aspectos geogrĂĄfico e temporal limitados pela Convenção de 1951. Surge, portanto, o Protocolo ao Estatuto dos Refugiados, de 1967, que ampliou o âmbito de aplicação da Convenção de 1951 à situação de "novos refugiados", ou seja, àqueles que, integrando a definição da Convenção de 1951, tornaram-se refugiados em consequĂȘncia de acontecimentos ocorridos depois de 1Âș de janeiro 1951, inclusive fora da Europa[23]. Dessa forma, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados pôs fim à chamada reserva temporal da Convenção e impedia os novos paĂ­ses signatĂĄrios de adotar a reserva geogrĂĄfica, modificando o regime internacional para refugiados.

Com o tempo e a emergĂȘncia de novas situações geradoras de conflitos e perseguições, tornou-se crescente a necessidade de providĂȘncias que colocassem os novos fluxos de refugiados sob a proteção das provisões da Convenção. Assim, um Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados foi preparado e submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966. Na Resolução 2198 (XXI) de 16 de dezembro de 1966, a Assembleia tomou nota do Protocolo e solicitou ao SecretĂĄrio-geral que submetesse o texto aos Estados para que o ratificassem. O Protocolo foi assinado pelo Presidente da Assembleia Geral e o SecretĂĄrio-geral no dia 31 de janeiro de 1967 e transmitido aos governos. Entrou em vigor em 4 de outubro de 1967.

Com a ratificação do Protocolo, os paĂ­ses foram levados a aplicar as provisões da Convenção de 1951 para todos os refugiados enquadrados na definição da carta, mas sem limite de datas e de espaço geogrĂĄfico. Embora relacionado com a Convenção, o Protocolo é um instrumento independente cuja ratificação não é restrita aos Estados signatĂĄrios da Convenção de 1951.

De acordo com o seu Estatuto, é de competĂȘncia do ACNUR promover instrumentos internacionais para a proteção dos refugiados e supervisionar sua aplicação. Ao ratificar a Convenção e/ou o Protocolo, os Estados signatĂĄrios aceitam cooperar com o ACNUR no desenvolvimento de suas funções e, em particular, a facilitar a função especĂ­fica de supervisionar a aplicação das provisões desses instrumentos.

A Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, por fim, são os meios legais através dos quais é assegurado que qualquer pessoa, em caso de necessidade, possa exercer o direito de procurar e receber refĂșgio em outro paĂ­s.


O SISTEMA BRASILEIRO DE CONCESSÃO DE REFÚGIO NO PÓS-ESTATUTO DOS REFUGIADOS (1967 – 2018)

A questão dos refugiados é um fenômeno da ordem internacional através do qual se busca proteger e garantir os direitos fundamentais dos sujeitos que perderam a proteção no seu paĂ­s de origem ou de residĂȘncia. HĂĄ uma transferĂȘncia de responsabilidade de proteção do indivĂ­duo de um Estado para a comunidade internacional.

Ao mesmo tempo, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR, órgão especĂ­fico para tratar da questão dos refugiados, não possui um território próprio onde seja possĂ­vel proteger os refugiados, por isso, a responsabilidade de proteção do indivĂ­duo cabe à comunidade internacional, através de um de seus membros. Faz-se necessĂĄria, portanto, a incorporação da questão dos refugiados no ordenamento jurĂ­dico de cada Estado da comunidade internacional para que esta proteção se dĂȘ da forma mais ampla possĂ­vel.

Por outro lado, a Convenção de 1951 não indica um tipo de procedimento especĂ­fico a ser adotado para a determinação do estatuto do refugiado; é, portanto, deixado a critério de cada Estado signatĂĄrio o estabelecimento de tal procedimento, levando em consideração as suas estruturas constitucionais e administrativas.

Como consequĂȘncia, alguns paĂ­ses, especialmente na África e da América latina, ampliaram a definição do termo "refugiado" ("conceito ampliado"), dentre eles o Brasil, conforme previsto no art. 1Âș da Lei nÂș 9.474/96. Entretanto, em muitos outros paĂ­ses, principalmente europeus, a maioria dos pedidos de asilo é rejeitada com base em uma interpretação restritiva, descrita no Artigo 33 da Convenção de 1951. Sob a perspectiva de polĂ­tica relacionada aos direitos humanos defendida pela ONU e ao ACNUR, esta situação suscita uma grande preocupação, haja vista que, na prĂĄtica, nem sempre é possĂ­vel distinguir, com segurança, um refugiado, um deslocado ou um imigrante econômico[24].

O Brasil recepcionou o instituto do refĂșgio através da ratificação da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados e também adotou uma lei especĂ­fica, elaborada pelos representantes do governo brasileiro juntamente com representantes do ACNUR, para tratar da questão: a Lei 9.474/97. A Lei apresenta os critérios pelos quais uma pessoa é reconhecida como refugiada e o procedimento através do qual se darĂĄ a concessão da proteção a essas pessoas e, apesar de não ser tão recente, é pouco conhecida no Brasil, fato este que prejudica a efetiva proteção dos refugiados no território brasileiro. O Brasil tem se esforçado para fornecer instrumentos aptos a assegurar a mais ampla proteção aos refugiados e por tal preocupação a legislação brasileira que trata da proteção dos refugiados foi considerada pelo ACNUR como paradigma de uma legislação uniforme na América do Sul[25].

A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados das Nações Unidas de 1951 (Convenção dos Refugiados), foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nÂș 50.215, de 25 de janeiro de 1961 ("Promulga a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, concluĂ­da em Genebra, em 28 de julho de 1961"). Em nosso paĂ­s, a proteção aos refugiados encontra estabelecida na Constituição Federal de 1988 (artigo 5Âș, §§ 2Âș e 3Âș) e na Lei nÂș 9.474/97 ("Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providĂȘncias"), que em seu artigo 1Âș, incisos I, II e III traz a definição legal de refugiado[26].

Essa definição é também conhecida como "definição ampliada" que ao lado da "definição clĂĄssica" de refugiado não devem ser consideradas como excludentes e/ou incompatĂ­veis, e sim, complementares. Sobre esse tema, dispõe o texto da "Conclusão Terceira da Declaração de Cartagena" no sentido de "Reiterar que, em vista da experiĂȘncia tida como função da afluĂȘncia maciça de refugiados na ĂĄrea centro-africana, faz-se necessĂĄrio encarar a extensão do conceito de refugiado."[27].


OPERAÇÃO ACOLHIDA (2018 – 2021)

A crise na RepĂșblica Bolivariana da Venezuela

A Operação Acolhida, criada em março de 2018, é a resposta do governo brasileiro ao grande fluxo migratório proveniente da RepĂșblica Bolivariana da Venezuela, devido à crise polĂ­tica, econômica e social. O Governo Federal criou, em 2018, o ComitĂȘ Federal de AssistĂȘncia Emergencial para Acolhimento a Pessoas em Situação de Vulnerabilidade, formado por 12 ministérios e presidido pela Casa Civil da PresidĂȘncia da RepĂșblica. Ao Ministério da Defesa, além da coordenação do trabalho das Forças Armadas, cabe realizar apoio logĂ­stico e operacional às atividades. É baseada em trĂȘs pilares: Ordenamento da Fronteira, Abrigamento e Interiorização.

De acordo com agĂȘncias da ONU, o nĂșmero de venezuelanos que deixou o paĂ­s ultrapassa 5 milhões de pessoas e o Brasil seria o quinto destino procurado por eles. A Operação Acolhida é também uma grande força-tarefa humanitĂĄria executada e coordenada pelo Governo Federal com o apoio de entes federativos, agĂȘncias da ONU, organismos internacionais, organizações da sociedade civil e entidades privadas, totalizando mais de 100 parceiros.

O atendimento ao fluxo de migrantes e refugiados venezuelanos na fronteira do Brasil com a Venezuela começa nas estruturas montadas para assegurar a recepção, identificação, fiscalização sanitĂĄria, imunização, regularização migratória e triagem de todos quem vem do paĂ­s vizinho.

Segundo a PolĂ­cia Federal, de 2017 até junho de 2021, mais de 610 mil venezuelanos entraram no Brasil e 260 mil solicitaram regularização migratória para buscar oportunidades e melhores condições de vida.

As seguintes estruturas da Operação Acolhida estão desdobradas em Pacaraima, Roraima, onde diversos órgãos trabalham em total sinergia: Forças Armadas; Ministério da Cidadania; PolĂ­cia Federal; Receita Federal; Defensoria PĂșblica da União (DPU); Tribunal de Justiça de Roraima; Organização Internacional para as Migrações (OIM); Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR); Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA); ComitĂȘ Internacional da Cruz Vermelha (CICV).

A Interiorização

A terceira etapa do processo é a Interiorização, que consiste em deslocar refugiados e migrantes de Roraima para outros estados brasileiros. Esta é a principal estratégia do Governo brasileiro para promover a inclusão socioeconômica desta parcela de venezuelanos. Além disso, esta parte do processo contribui para reduzir a pressão sobre os serviços pĂșblicos em Roraima. Desde o inĂ­cio da ação, jĂĄ foram interiorizadas mais de 70 mil pessoas para mais de 800 municĂ­pios brasileiros em diversas Unidades da Federação. Para participarem desta etapa do atendimento, os refugiados precisam estar regularizados, vacinados e aptos clinicamente. Além disso, eles precisam estar devidamente informados sobre a cidade de destino e sobre seus direitos e deveres no processo. Os participantes precisam, ainda, de uma Declaração de Voluntariedade assinada.

O procedimento para o pedido de refĂșgio, segundo a legislação brasileira, divide-se em quatro fases: a primeira fase consiste na solicitação do refĂșgio através da PolĂ­cia Federal nas fronteiras; na segunda fase ocorre a anĂĄlise do pedido realizada pelas CĂĄritas Arquidiocesanas; a terceira fase é a decisão proferida pelo ComitĂȘ Nacional para Refugiados – CONARE e dessa decisão, caso seja negado o reconhecimento da condição de refugiado, abre-se uma quarta fase que é o recurso cabĂ­vel da decisão negativa do CONARE para o Ministro da Justiça que decidirĂĄ em Ășltimo grau de recurso.

No Brasil portanto, o sistema de concessão de pedido de refĂșgio envolve a participação de quatro organismos: o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Departamento da PolĂ­cia Federal, a CĂĄritas Arquidiocesana e o ComitĂȘ Nacional para Refugiados – CONARE.

Em visita às instalações da Operação Acolhida em Pacaraima, Roraima, e verificando o esforço dos diversos órgãos promover a inclusão socioeconômica desta parcela de venezuelanos, declarou o ministro da Cidadania, João Roma: "O Brasil, através do seu povo, com tanta solidariedade, tem conseguido lidar com essa questão e tem reconhecimento internacional. VĂĄrios organismos tĂȘm elogiado as prĂĄticas do Governo brasileiro e também do povo brasileiro, que tem conseguido fazer a ambientação dessas pessoas".

O reconhecimento internacional

O apoio do Ministério da Defesa e das Forças Armadas na realização da Operação Acolhida conta com reconhecimento internacional. Em janeiro, o representante adjunto do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Federico Martinez, considerou que o trabalho tem sido "exemplar e muito efetivo para preservar a dignidade das pessoas venezuelanas e para facilitar seu processo de integração local nas comunidades receptoras, cooperando de forma harmônica com foco nos fins humanitĂĄrios".

Em reconhecimento da comunidade internacional ao trabalho realizado, a Operação Acolhida, o ACNUR e outras agĂȘncias da ONU receberam, no final de 2018, o "PrĂȘmio Direitos Humanos 2018", do então Ministério de Direitos Humanos. O reconhecimento a quatro agĂȘncias do sistema ONU no Brasil e ao Exército brasileiro foi feito pelo Ministério dos Direitos Humanos em cerimônia que também premiou empresas, órgãos pĂșblicos, servidores e representantes da sociedade civil.

CONCLUSÃO

Segundo o ACNUR, diferentemente das décadas anteriores, a realidade do refĂșgio no Brasil tem mudado muito nos Ășltimos cinco anos com a chegada de mais de 700.000 pessoas da Venezuela em busca de proteção internacional. Como nunca, nosso Brasil é um paĂ­s de destino de milhares de pessoas que foram forçadas a deixar suas vidas e tentam reiniciar um futuro longe da sua PĂĄtria.

Pela primeira vez na história, a realidade do refĂșgio em massa chegou a cada municĂ­pio e Estado da federação e converteu-se em parte da nossa realidade, exigindo uma resposta abrangente para o tamanho e necessidade da população a ser acolhida. E, mesmo assim, o Brasil continuou a demonstrar sua liderança regional e global, rapidamente estabelecendo uma operação humanitĂĄria em nĂ­vel federal – a Operação Acolhida, enfrentando ainda as adversidades decorrentes da grave crise sanitĂĄria mundial, sem que a acolhida aos milhares de refugiados fosse interrompida e/ou dificultada.

Não é possĂ­vel falar de alegria quando tantas pessoas ainda sofrem e são forçadas a deixar suas casas por perseguições individuais ou conflitos, seja na América Latina ou em outros locais pelo mundo afora, viajando em condições, muitas vezes, de extrema vulnerabilidade. Entretanto, a resposta que vem sendo dada no Brasil às pessoas refugiadas alimenta a esperança de que é possĂ­vel acolhĂȘ-las com dignidade e humanidade, não deixando ninguém, para trĂĄs.

Esta operação humanitĂĄria – a Operação Acolhida é, sem dĂșvida alguma, mais abrangente e complexa do que a participação do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial através da Força ExpedicionĂĄria Brasileira – FEB onde nossos "pracinhas" combateram o regime nazifascista em terras do Velho Mundo entre 1944 e 1945, incorporada ao Comando do Teatro de Operações do Mediterrâneo e enquadrada pelo V Exército norte-americano sob as ordens do general Mark Clark.

Naquela ocasião, em sĂ­ntese magnĂ­fica o General Mascarenhas de Morais [6] assim se expressou: "No perĂ­odo aproximado de um ano no Teatro de Operações do Mediterrâneo, a FEB com o efetivo total de pouco mais que 25.000 homens e um efetivo combatente de 15.000 homens (1ÂȘ Divisão de Infantaria), combateu continuamente durante 239 dias, teve 2.000 baixas de combate, dos quais 451 mortos, enfrentou sucessiva e alternadamente 10 divisões alemãs e trĂȘs divisões italianas, fez 20.500 prisioneiros de guerra, entre os quais dois oficiais generais, sendo um alemão e outro italiano".

A importância e magnitude da Operação Acolhida pode ser materializada em nĂșmeros: desde sua concepção em 2018, jĂĄ acolheu mais de 700.000 pessoas da Venezuela em busca de proteção; registrou cerca de 78.767 venezuelanos interiorizados em 844 municĂ­pios brasileiros entre abril de 2018 e junho deste ano; envolveu nove ministérios: Cidadania, Defesa, Justiça e Segurança PĂșblica, Mulher, FamĂ­lia e Direitos Humanos, Relações Exteriores, SaĂșde, Educação, Trabalho e PrevidĂȘncia e Economia, além da Secretaria de Governo da PresidĂȘncia da RepĂșblica; também envolveu o apoio da AgĂȘncia da ONU para Refugiados (ACNUR), da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Unicef, UNFPA e PADEF, além de diversas organizações da sociedade civil; e segundo informações da Receita Federal, mais de 378 mil CPFs foram emitidos.

Tal resposta humanitĂĄria pelo governo brasileiro, que continua como um exercĂ­cio real dos princĂ­pios que o Pacto Global sobre Refugiados e que simboliza um esforço de toda a sociedade, só é possĂ­vel devido à coordenação interinstitucional desde sua concepção, e pelos incontĂĄveis parceiros em cada municĂ­pio onde a sociedade civil, as Nações Unidas, o setor privado, a academia, e cada cidadão se unem para acolher e para assegurar que efeitos negativos como a xenofobia e a discriminação contra os acolhidos sejam minimizados.

Enquanto a comunidade internacional tem denunciado sistematicamente a violação dos direitos humanos em relação aos milhares de refugiados vindos do Norte da África e da Ásia em direção à Europa, através do Mediterrâneo, decorrentes das polĂ­ticas desumanas adotadas em alguns paĂ­ses da "civilizada" Europa, o sucesso da Operação Acolhida continua sendo o melhor cartão de visitas que marca a trajetória do Brasil na temĂĄtica da proteção de refugiados, desde a sua adesão/ratificação ao Estatuto dos Refugiados em 1951, recebendo diversos prĂȘmios nacionais, bem como o reconhecimento internacional, além de angariar a confiança dos parceiros envolvidos nessa missão, transformando-a numa das principais contribuições humanitĂĄrias para o restante do mundo, ainda mais em uma conjuntura internacional desafiante em matéria de ajuda humanitĂĄria.

Assim como a FEB projetou a imagem do Brasil, histórica e politicamente, na metade do século passado em defesa da causa democrĂĄtica, a Operação Acolhida vem demonstrando ao mundo que o Brasil é uma Nação adulta e responsĂĄvel, capaz de repelir qualquer agressão e lutar por seu ideal na defesa dos direitos humanos, na autodeterminação dos povos e da liberdade, nos termos previstos na nossa Constituição.

Enfim, o ĂȘxito da Operação Acolhida e os resultados obtidos desde a sua instalação em 2018, aliado ao reconhecimento nacional e internacional na proteção dos refugiados venezuelanos pelo governo brasileiro, despertou as atenções da comunidade internacional que sugeriu a sua indicação ao PrĂȘmio Nobel da Paz de 2021.

NOTAS

[1] O PerĂ­odo PaleolĂ­tico é geralmente dividido em PaleolĂ­tico Inferior (4 milhões de anos até 30 mil a.C.) e PaleolĂ­tico Superior (30 mil a.C. até 10 mil a.C.).

[2] O NeolĂ­tico ou Idade da Pedra Polida foi a parte da pré-história entre 12 mil a. C. e 4 mil a. C. O perĂ­odo é considerado uma das fases mais importantes para o desenvolvimento da civilização. Foi marcado pelo fim da glaciação (grandes perĂ­odos de resfriamento da Terra) e criação da escrita pelos sumérios.

[3] Para saber mais consulte: As primeiras civilizações da idade da Pedra aos povos Semitas (LÉVÊQUE, 2009).

[4] Organização Internacional, criada após a Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), pelo Tratado de Versailles, com o escopo de manter a paz e a segurança internacional. É antecessora da Organização das Nações Unidas (ONU), que também pode ser denominada de "Sociedade das Nações" (utiliza-se o termo liga para ressaltar o aspecto de prevenção militar da organização, e sociedade para destacar a sua face consensual). Cf. JUBILUT, Liliana Lyra. Op. cit. p. 43-44.

[5] São pessoas que não tĂȘm sua nacionalidade reconhecida por nenhum paĂ­s. A apatridia ocorre por vĂĄrias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em reconhecer todos os residentes do paĂ­s como cidadãos quando este paĂ­s se torna independente (secessão de Estados) e conflitos de leis entre paĂ­ses. O Brasil tem assegurado, por meio de sua legislação, procedimentos de determinação da apatridia, assim como mecanismos para naturalização facilitada para pessoas reconhecidas como apĂĄtridas. Tais mecanismos de determinação de apatridia propiciam à pessoa um status legal que permite residĂȘncia e garante o usufruto dos direitos humanos bĂĄsicos, como acesso aos serviços pĂșblicos.

[6] Marechal João Baptista Mascarenhas de Morais (1883 - 1968) foi o comandante da Força ExpedicionĂĄria Brasileira - FEB, na Segunda Guerra Mundial durante a Campanha da ItĂĄlia, entre 1944 e 1945. Em dezembro de 1943, o então General Mascarenhas de Moraes foi designado para comandar a 1ÂȘ Divisão de Infantaria ExpedicionĂĄria - 1ÂȘ DIE.


REFRÊNCIAS

[1] BARROS, Miguel Daladier. O Drama dos Refugiados Ambientais no Mundo Globalizado. BrasĂ­lia: Editora Consulex, 2011, p. 25.

[2] Idem, p. 26.

[3] WARMINGTON, B. H. O perĂ­odo cartaginĂȘs. In: MOKHTAR, G. (Org.). História geral da África, II: África antiga. 2. ed. BrasĂ­lia: Unesco, 2010. p. 473-500.

[4] PEREIRA, Luciana Diniz Durães. O direito internacional dos refugiados: anĂĄlise crĂ­tica do conceito "refugiado ambiental". Dissertação (Mestrado em Direito PĂșblico). Del Rey, 2009.

[5] Idem, p. 3.

[6] SOUSA, Suzane Valeska Maciel de. O CONCEITO DE REFUGIADO: HISTORICIDADE E INSTITUCIONALIZAÇÃO. DisponĂ­vel em: https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1554764413_ARQUIVO_HISTORICIDADEDOCONCEITODEREFUGIADO_ANPUH-RECIFE.pdf < Acesso em: 7 Nov. 2021 >

[7] JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos Refugiados. São Paulo: Método, 2007, p. 23.

[8] Idem, p. 23-24.

[9] SOUSA, Suzane Valeska Maciel de. Ob. cit. p. 3.

[10] ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo, trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras. 1989.

[11] JUBILUT, Liliana Lyra. Ob. cit. p. 43-44.

[12] PACÍFICO, Andrea Pacheco. O capital social dos refugiados: bagagem cultural e polĂ­ticas pĂșblicas. Maceió: EDUFAL, 2010, p. 39.

[13] GERICK. Gerda (am). 1920: Primeira assembleia da precursora da ONU. DisponĂ­vel em: < https://www.dw.com/pt-br/1920-primeira-assembleia-da-precursora-da-onu/a-326171 > Acesso em: 28 Nov. 2021.

[14] BARROS, Miguel Daladier. 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos & A proteção dos Direitos Humanos no Brasil após 30 anos de vigĂȘncia da atual Constituição. Imperatriz: Ethos Editora, 2018, p. 12.

[15] MOREIRA, Julia Bertino. Redemocratização e direitos humanos: a polĂ­tica para refugiados no Brasil (Re-democratization and human rights: refugee policy in Brazil). Revista Brasileira de PolĂ­tica Internacional, 2009. p. 112.

[16] BARROS, Miguel Daladier. Direitos Humanos e Refugiados 70 anos após a Segunda Guerra mundial. BrasĂ­lia: Revista JurĂ­dica Consulex, Edição Especial, Ano XIX - NÂș 431, 1Âș de Janeiro de 2015, p. 47-48.

[17] MOREIRA, Julia Bertino. Ob. cit. p. 112.

[18] Idem, p. 11-113.

[19] Ibidem, p. 113.

[20] Idbidem, p. 113.

[21] BARROS, Miguel Daladier. Ob. cit. p. 48.

[22] Idem, p. 48.

[23] Ibidem, p. 48.

[24] Idbidem, p. 48.

[25] MAZZA, Matheus. Direitos humanos dos refugiados.

DisponĂ­vel em: < https://matheusmazza.jusbrasil.com.br/artigos/519773737/direitos-humanos-dos-refugiados >; Acesso em: 01 de março de 2021.

[26] BARROS, Miguel Daladier. O Drama dos Refugiados Ambientais no Mundo Globalizado. BrasĂ­lia: Editora Consulex, 2011, p. 50.

[27] Idem, p. 50.

CURRICULUM VITAE



MIGUEL DALADIER BARROS. Coronel Reformado do Exército Brasileiro, Graduado em CiĂȘncias Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e Mestre em CiĂȘncias Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). Graduado em MatemĂĄtica e Direito (UFMA). Advogado. Escritor. Palestrante. Professor da Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão (UNISULMA). [email protected]

OBSERVAÇÃO

Este artigo, gentilmente cedido pelo Autor, jĂĄ foi publicado na Revista PrĂĄtica Forense, nÂș 71


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